14 de junho de 2009

J.N. - Junho 2009



O que está aqui apresentado é a versão integral da entrevista, respondida por escrito. Para ver a versão editada pelo jornal e publicada na edição de domingo, 14 de junho de 2009, por favor clique em Jornal de Notícias



Tem uma formação muito completa. Acredita que para se ser actor não basta um dom inato?
Acho que a minha formação é mais diversificada do que propriamente completa em qualquer uma das áreas em que me envolvi.
Seja como for acho que, em qualquer área de trabalho, se aliarmos uma eventual “vocação” à “formação” só temos a crescer e a ganhar com isso.


Como olha para os colegas que têm vindo a emergir, uns a reboque da imagem, outros de um mediatismo concedido, por exemplo, pelo fenómeno "Morangos com açúcar"?
Tento olhar caso a caso. Já fui mais crítico do que sou agora, em relação a isso. Hoje acho que depende muito dos objectivos e da postura de cada um. Mesmo trabalhando na mesma área há pessoas com objectivos muito diferentes, e o mercado vai tendo espaços para várias formas de estar na profissão. Há gente que veio de outras áreas, ou que não teve formação formal e que depois tem uma postura muito séria, quer ao nível do profissionalismo quer ao nível da receptividade para aprender e para crescer. Cada vez valorizo mais a formação humana, o crescimento, a busca e a honestidade no ofício que se escolhe.

Para se tornar um bom profissional, é preferível ser-se razoável em muitos registos, ou excelente num só?
Bom mesmo, era ser-se excelente em vários!
Acredito que “tocar vários instrumentos” torna muito mais improvável ser-se muito bom em qualquer um deles, e falo por mim que andei anos da minha vida a “apalpar terreno” e a experimentar várias formas de expressão. No entanto quando trabalho em espectáculos onde interajo com músicos, bailarinos, artistas plásticos, luz, som, etc., é muito bom falar um bocadinho a língua deles. Ajuda-me a compreender. A integrar. E dá-me um prazer enorme essa interacção. Acho que é o que mais gosto no meu ofício e uma das coisas que mais gosto de fazer na vida.


Confesso apaixonado de poesia e remetendo para as "Quintas de leitura", estes textos, para serem ditos, requerem dotes de representação, ou basta neles depositar sentimento?
Eu sou da opinião que dizer poesia não é, ou não deve ser, representar, no sentido em que não pressupõe a composição de uma personagem. Claro que em termos de voz e de palco, a técnica de um actor facilita o trabalho de dizer um poema em público.
Acho que acima de tudo é necessária uma paixão, um grande respeito pelo texto, ser-se verdadeiro na forma como se diz, mas não pretender ser outra pessoa. Tenho a convicção de que para se fazer um Hamlet se deve trabalhar para ser Hamlet; mas para dizer um poema não preciso e não devo tentar ser o Álvaro de Campos, a Sophia ou os seus sujeitos poéticos.
Para procurar um equilíbrio, gosto de pensar que o que fica na memória de quem ouve um poema dito, deverá ser o poema, muito mais do que quem o disse.


Como descreve o projecto "Caixa geral de despojos"? Representa uma espécie de papel catártico na sua vida?
Não propriamente… A “caixa” tem sido para mim um laboratório de experiências, um lugar de partilha e de carinho. Foi um grupo que se formou sem ter consciência de que se estava a formar. Fomos agregados pelo João Gesta e pelo Daniel Jonas, como um grupo de amantes de poesia, para fazer um espectáculo no Teatro do Campo Alegre chamado “caixa geral de despojos” em Janeiro de 2003. Quando demos por nós éramos já um grupo com esse nome. Trata-se de conjunto de pessoas de várias áreas (poetas, actores, jornalistas, fotógrafos) que gostam de poesia e que às vezes até têm formas de a encarar bastante diferentes.

Em seu entender, Poesia é... e Prosa é...?
Essa é difícil… Vejo a poesia como a concentração essencial da emoção, das imagens, da experiência sensorial. Uma espécie de energia atómica ou térmica. Que é indivisível. Arde por dentro, aquece, queima, vive na eminência de “rebentar”. Já a prosa, nesse jogo, seria mais a energia hidráulica. A construção demorada, porém poderosíssima. O correr da água. Um caminho que se vai construindo de forma mais lenta e cristalina.

“Falhar, falhar de novo, falhar melhor.” É também um lema que embandeira individualmente? Porquê?
Sim. Ainda que eu gostasse de acertar mais vezes! Esse é o lema da “caixa” e nasce a partir de Samuel Becket. Gosto muito dessa ideia de irmos integrando os nossos erros para fazer melhor, não deixando de arriscar. Voltando ao Campos, na Tabacaria escreveu “Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas! Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?”.

Partilha da ideia ventilada de que um actor só se realiza no palco?
Não. Eu vou-me sentido realizado em várias experiências. Ainda não fiz, por exemplo, cinema (só curtas-metragens) para saber que nível de experiência poderá advir daí. Mas é verdade que adoro trabalhar em palco, em parte pelo processo, os ensaios, a experimentação, o aprofundamento. E, claro, ter o público à frente é uma experiência única. É arrepiante.

Acredita que as novelas são uma forma de ficção menor do que aquela que o Teatro oferece?
“Menor”? Depende de que “tamanho” estivermos a falar.
Eu já vi do melhor e do pior, em novelas como em teatro.
Acho muito fácil e pouco consistente formar esse tipo de juízo generalizado. Além do mais são produtos que podem desempenhar funções sociais e comerciais muito diferentes.


Dos personagens que tem vindo a vestir no pequeno ecrã, qual se aproxima mais do Pedro?
Talvez o Matheus, das “Paixões Proibidas”. Quando isso acontece a primeira coisa que faço é tentar construir um histórico para o personagem que me ajude a distanciá-lo de mim. Aprendi isso com a Natália Luíza.

É verdade que dá mais gozo interpretar um vilão, como aconteceu em "Deixa-me amar" do ponto de vista de exorcizar o lado sombrio que todos comportamos?
Eu acho mais divertido. O personagem que mais gozo me deu fazer em televisão foi o Pedro, do “Passo em Falso”, um filme da série Casos da Vida. Era um médico obsessivo, psicótico e perigoso. Foi realizado pelo António Correia, direcção de actores da Karla Muga e contracenei com a Daniela Ruah, o João Grosso e a Adriana Moniz. Adorei fazer esse trabalho. Gravámos em quatro dias. Foi uma loucura.

As novelas de Rui Vilhena são, de certa forma, associadas a uma maior complexidade do guião, sentiu esse desafio extra com o papel de Jonas Viana Levi?
Senti, sim. Eu admiro muito a escrita/autoria do Vilhena. As personagens servem a história sem normalmente corromperem a sua própria estrutura e coerência. São muito consistentes. Isso é um desafio e ao mesmo tempo uma grande ajuda.

Há alguma preocupação neste trabalho em transmitir mensagens subliminares que só podem ser lidas nas entrelinhas?
Sim, há. A própria equipa de realização coordenada pelo Carlos Dante e a directora de actores Maria Henrique pediam isso.

Afinal, quem é o Jonas Viana Levi para o Pedro Lamares?
Um tipo leal, de princípios rectos, com uma educação rígida virada para o sucesso, que está completamente desorientado na vida. Sabe o que não quer mas não faz ideia do que quer, e já não suporta mais o peso e a pressão que a família e a sociedade lhe colocam em cima no sentido de ter uma carreira, um comportamento formatado e um lugar de destaque na sociedade. Uma espécie de “patinho feio” ou “Peter Pan”, à sua maneira.

"Olhos nos olhos" é demasiado vanguardista para o público português?
Não. A Vanguarda tem a ver com um movimento pioneiro, que antecipa o que está para vir. O que acontecia nessa novela era tratar de temas que já existem na realidade actual, alguns bastante antigos, que continuam a ser fracturantes e duros para a sociedade. Talvez fosse um produto para um público menos generalizado.

O Pedro tem estado ligado a projectos em vários canais distintos. Qual é a sua opinião face aos contratos de exclusividade? Castram a liberdade de um actor?
Não vejo isso dessa forma, até porque tem um prazo pré acordado. A liberdade de uma pessoa, actor ou não, pressupõe escolher qual o caminho a seguir em determinado momento de vida, dependendo dos objectivos e ambições que tiver. A exclusividade pode ser uma limitação para uns, e uma forma de construção de uma liberdade (imediata ou a médio/longo prazo) para outros.
Nunca assinei ou li um contracto de exclusividade pelo que não sei exactamente que tipo de obrigações tem e que margem de manobra e escolha o actor pode salvaguardar.


Como foi a experiência de trabalhar no Brasil? Eles estão, realmente, mais à frente do que nós na representação? De onde vem um fluir tão natural que lhes transpira dos papéis que interpretam, que por cá é mais raro?
A experiência foi forte e positiva, ainda que muito dura. O processo de trabalho, a intensidade e as condições chegaram a estados muito próximos dos limites possíveis. Mas aquilo que fui fazer ao Brasil teve muito a ver com um processo pessoal. Fui fechar um ciclo. Fui mergulhar num país e numa cultura que admiro profundamente. Fui para crescer. E tudo isso eu fiz, da forma que fui capaz.
Quanto aos actores, não sei se eles estão “mais à frente”, usando a sua expressão. O que sei é que têm uma escola de televisão muito mais antiga que a nossa, têm um dos canais mais fortes do mundo (estudado internacionalmente como um fenómeno de poder dos media) e tem uma forma de estar na vida realmente mais gingada, mais solta, mais imediata. Se juntarmos essa postura de vida com a tal escola televisiva, com as prioridades da direcção artística e com a escrita com que trabalham, obtemos o tipo de resultado que reconhecemos como sendo “Brasileiro”.


Sente dificuldade em descolar-se das personagens a quem dá vida? É necessário um exercício de distanciação, um impôr de hiatos, para que a identidade própria não se dissolva/dilua?
Tive um professor que disse: “É necessário saber entrar na dor, tanto quanto saber sair, se quiserem ser actores”. Claro que não temos um botão para isso.
Tenho vindo a aprender que ser actor é uma actividade que realmente tem muito a ver com trabalho, no sentido da construção. A personagem não “desce sobre nós”. Ela é construída, composta, criada. Dá trabalho. Às vezes tira o sono. Faz-nos companhia. Chega a irritar-me. Acredito que quanto mais consistente ela for mais se distancia de nós próprios.


Leva o trabalho para a casa, ou, uma vez a porta fechada, volta a ser o Pedro?
Tenho que levar, porque preciso decorar o texto em casa. Também acontece de ficar a pensar na personagem, a trabalhar sobre ela, principalmente nas fazes iniciais de um trabalho.

Querer ser actor, é querer ser-se um outro? Denota insatisfação com a identidade pessoal? Compreende algum "voyeurismo", isto é, de espreitar, despindo-se de si, como é ser diferente?
Eu estou a gostar de ser eu, nesta vida, mais não seja por poder ser actor! O que eu quero é contar histórias, de preferência que mexam em assuntos que me interessam.
Uma vez vi uma entrevista com o Malkovich em que ele dizia “a mim pagam-me para fazer aquilo que outros, se fizessem, seriam internados no manicómio”. Tem humor, e uma certa razão, quanto a mim.
O que distingue isto do voyeurismo é a coragem de não ficar a observar de fora, com o nosso espaço protegido e o nosso sentido crítico a fazer juízos de valor. Cabe-nos passar para o lado de lá. Pormo-nos “nos sapatos do outro”.


Que projectos se seguem na sua carreira?
Segue-se a nova novela da autoria de Tozé Martinho, para a TVI. Seguir-se-á sempre a poesia, espero! E está a nascer um projecto que estava em “incubadora” há mais de quatro anos. É um projecto muito especial para mim, com o pianista Álvaro Teixeira Lopes. Trata-se de um espectáculo de poesia de língua Portuguesa, música que vem desde o barroco até ao contemporâneo e imagem de artistas plásticos e fotógrafos. O projecto ainda não tem nome certo, mas os primeiros espectáculos serão para o “Festival em Rotação” (entre o Porto e Vila Praia de Âncora) em Julho, e o “Festival de Outono” (Aveiro) em Setembro/Outubro, ambos com imagem de Manuela Pimentel. Este formato dos primeiros espectáculos vai chamar-se Amo-te.


Elsa Pereira - Jornal de Notícias - 14 de Junho de 2009

1 comentário:

bulletproof disse...

:)
grande maridinho.
sinto-me privilegiada por os nossos caminhos se terem cruzado.
um BEIJO